Patriotismo e Espiritismo

Nação com ou sem orgulho?!
Em tempos em que o conceito de Estado-nação e o sentimento de pertencimento do indivíduo em relação ao seu país, à sua identidade nacional, são tão discutidos, em um cenário de globalização e de projetos supranacionais, parece útil propor uma reflexão sobre o tema, em conversa com a Doutrina Espírita.



Sempre salvaguardando a necessidade de separar o que é posição efetivamente doutrinária e o que é esforço de articulação de ideias de nossa parte, com caráter mais pessoal e, portanto, sem fazer lei em matéria de Espiritismo.

Compete coletar primeiro o material doutrinário a respeito. Em O Livro dos Espíritos, no capítulo VI da Parte Segunda, após discutir com os Espíritos o interesse que os desencarnados podem votar aos seus afazeres terrenos, particularmente pelas nossas artes e manifestações culturais, Kardec obteve dos seus interlocutores a resposta de que isso depende da sua elevação. Para os Espíritos realmente elevados, todas as nossas artes e expressões, por mais refinadas e inebriantes que nos pareçam, são de bem pouco interesse e envergadura, atentando esses Espíritos mais para aquilo que “prove a elevação dos encarnados e seus progressos” (questão 316), isto é, aquilo que, dentro do circuito das transitoriedades terrenas, pode ter impacto efetivo na trajetória geral de nosso desenvolvimento como Espíritos.

Em seguida, Kardec questiona, na pergunta 317, exatamente: “Após a morte, conservam os Espíritos o amor da pátria?” Ao que os Espíritos responderam: “O princípio é sempre o mesmo. Para os Espíritos elevados, a Pátria é o universo. Na Terra, a pátria, para eles, está onde se ache o maior número das pessoas que lhes são simpáticas”. Em longa nota, Kardec refaz o argumento, comentando que são quase infinitas as “condições dos Espíritos e as maneiras por que veem as coisas”, e que há, naturalmente, aqueles cuja evolução não permite que se afastem muito de nossas concepções e interesses restritos, vinculando-se com prazer e afinco aos nossos gostos e atividades terrenos, enquanto outros, de maior evolução, se importam tão-somente com o que, de forma notória e direta, colabore para o nosso progresso.

Referências mais ou menos tangentes ao tema do patriotismo aparecem ainda em algumas outras passagens doutrinárias. Na Revista Espírita, em junho de 1864, sob o título “Perseguições militares”, comenta Kardec a perseguição que alguns militares espíritas sofreram, em razão de sua crença, dentro do oficialato, e termina comparando o orgulho que sentem “de deixar um membro no campo de batalha pela pátria terrestre” com o sentimento que devem ter perante os “desgostos e desagrados suportados pela pátria eterna e pela causa da Humanidade”. Já em outubro de 1863, sob o título “Espíritos visitantes – François Franckowski”, em mensagem mediúnica, o Espírito de mesmo nome se manifesta lamentando crimes cometidos na Polônia. Ele começa dizendo que “o amor a Deus é o sentimento que resume todos os amores, todas as abnegações”, e que “o amor à pátria é um raio desse sublime sentimento”, antes de descrever os horrores que queria deplorar, e se referir àquela nação como seu infeliz e “pobre país”.

Como em vários outros exemplos, em O Céu e o Inferno, na sua segunda parte, capítulo VIII, o Espírito Charles de Saint G…, identificado como um Espírito encarnado como idiota (isto é, alguém com alguma deficiência intelectual, constrangido pelas limitações impostas pelo corpo físico), se manifesta em emancipação, evocado, e diz que em breve tempo retornará “à sua pátria” – isto é, ao mundo espiritual, não à França. A mesma coisa diz o Espírito Sanson, no capítulo II (Espíritos felizes), ao se referir ao espaço como sua pátria. Em contrapartida, em junho de 1859, o Espírito Goethe, sob o título “Palestras familiares de além-túmulo”, perguntado sobre sua antiga antipatia pelos franceses, quando encarnado, respondeu que é “muito patriota”, e que continua amando a Alemanha mais do que qualquer outro país “por seu pensamento e por seus costumes quase patriarcais” – particularismo que, tal como vemos na questão 317, já denota certo grau de inferioridade.

Ainda, em carta sobre o Espiritismo na Espanha publicada em março de 1869 e enviada a Kardec, um espírita daquele país, Manuel Gonzalez Soriano, menciona o patriotismo, ao lado das ciências, artes, indústrias, religiões e filosofias, como uma das “grandes ideias que fizeram o mundo progredir”, tendo seus “apóstolos e seus mártires”. Finalmente, em O Evangelho Segundo o Espiritismo, Kardec se refere ao “sacrifício dos interesses e das afeições de família aos da Pátria”, perguntando se, em relação àquele que deixa os parentes para marchar em defesa de seu país, “não se lhe reconhece (…) grande mérito em arrancar-se às doçuras do lar doméstico, aos liames da amizade, para cumprir um dever”. Faz então uma analogia disso a palavras de Jesus que sugerem a necessidade de um afastamento das questões domésticas e íntimas para pôr mãos à obra pela causa cristã. A analogia sugere, portanto, um tom algo positivo sobre esse dever e esse sentimento.

Afinal, o que se permite concluir desse apanhado? Em primeiro lugar, podemos asseverar que, no campo do planeta Terra, considerado em sua posição no Mundo Material, a ideia da existência de diferentes países, com suas conformações particulares, características particulares e mesmo espaços naturais particulares, é produto de uma dinâmica natural. Os Espíritos dizem ainda que existe certa dose média de associação entre os caracteres dos Espíritos que encarnam juntos em um determinado povo, e que isso impacta no caráter geral de cada sociedade e de cada cultura. Todas essas culturas e povos, tais como as famílias e indivíduos, têm também os seus Espíritos protetores, a velar por seu desenvolvimento e seus caminhos. É assim que, na questão 789, os Espíritos responderam a Kardec que nem o progresso fará com que todos os povos da Terra se reúnam sob a égide de uma só nação, posto que “da diversidade dos climas se originam costumes e necessidades diferentes, que constituem as nacionalidades, tornando indispensáveis sempre leis apropriadas a esses costumes e necessidades”. O que deve vir a unir os povos, dentro do que diz a proposta espírita, é a caridade, não a unificação política ou cultural.

No entanto, os Espíritos, existindo no Universo e deslocando-se entre os infindáveis mundos, não têm pátria, no sentido terreno. Todo o Universo e toda a Criação são, para os que já atingiram essa elevação, igualmente um lar; os Espíritos Puros a todos amam indistintamente. Não faz sentido esperar que um Espírito de considerável envergadura seja “patriota”, num mundo superior, no sentido com que o somos aqui. O patriotismo, portanto, mesmo em sua melhor dimensão simbólica, é sim uma linguagem própria de certo grau de inferioridade espiritual, atinente a uma transitoriedade terrena que, salvo para os Espíritos mais “apegados” à realidade material, não se perpetuará pela sua trajetória infinita. Delimitar uma pátria para o Evangelho ou para o Espiritismo, quer seja esta a França ou o Brasil, tem sido, portanto, um equívoco acachapante de alguns confrades espíritas desde o século XIX, a nosso ver, apegados a certas retóricas ufanistas e mesclando a expressão de leis universais, própria do Espiritismo, com sentimentos particulares e transitórios.

Quer isto dizer que o patriotismo não tem valor e deva ser combatido? Aqui, naturalmente, como entendemos que este espaço permite, colocamos uma apreciação de conteúdo subjetivo e pessoal, embora em desejada conversa com o pensamento espírita. Acredito que não. Dissemos que o patriotismo é um sentimento que conversa com algo transitório; por analogia, assim também o é a família terrena, de sorte que a relação que temos com nosso pai ou nossa mãe, pela configuração familiar da presente encarnação, poderá não existir ou se inverter totalmente numa próxima. Existe um sentimento particular cultivado entre as famílias, dentro da organização social, em que elas, a um só tempo, procuram se auxiliar – tendo em vista o progresso individual de cada parente -, e ensaiam, em seu particularismo, o exercício do amor que, somente num futuro ainda distante, poderão sentir pela Humanidade cósmica inteira na mesma intensidade. Os laços, se sinceros, sobrevivem à morte; a configuração familiar terrena, porém, não. Dia virá, frisamos, em que mesmo esses laços não serão mais importantes do que o amor que o Espírito Puro sentirá por todas as criaturas do Universo. Então, mesmo a “família espiritual” abrangerá, para cada um de nós, a Humanidade inteira.


Do mesmo modo, parece-me que o sentimento de pertença cívica, e o impacto que o cultivo da memória de boas referências e de boas narrativas relacionadas a uma determinada comunidade pode exercer sobre a cultura nela em vigência, elementos que configuram o patriotismo, podem acabar sendo ferramentas úteis, no estágio presente do desenvolvimento dos Espíritos terrenos, para o progresso da coletividade e o enraizamento, em seu seio, de melhores valores. Não é porque uma determinada ferramenta ou realidade carecerá de importância no futuro, que ela é inútil hoje, como a criança, no curso de alfabetização, demanda certos elementos simbólicos e lúdicos para aprender que o estudante universitário dispensará.

Quero crer, com total respeito aos que discordarem, que o patriotismo pode ser uma das paixões de que fala O Livro dos Espíritos. Em sendo um gênero de “floreio”, de “excesso de que se acresceu a vontade” – neste caso, em relação aos sentimentos de dever e lugar dentro de uma comunidade, colaborando para o seu progresso e o cultivo dos melhores princípios em seu seio -, pode levar o homem “à realização de grandes coisas” (questão 907). Abusado, desviado para os despenhadeiros ignorantes do nacionalismo fanático e da xenofobia, passa, aí sim, à condição de totalmente indefensável, sob uma ótica espírita – ou, por outra, sob uma ótica minimamente equilibrada.

Por Lucas Berlanza Corrêa

FONTE: http://jornalcienciaespirita.spiritualist.one

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