Nomes e lugares distintos. |
Um
razoável conjunto de espíritas habituou-se a reputar sinônimos os vocábulos
erraticidade e mundo espírita, como se eles realmente fossem de idêntico
significado.
Não
obstante a força das ideias mal compreendidas e geradas pela cultura verbal do
ouvir dizer, trata-se de dois conceitos só aparentemente idênticos, embora
doutrinária e semanticamente distintos. Nesse ínterim, ouve-se comumente algum
espírita situar os Espíritos na erraticidade, à semelhança de um lugar onde
eles estivessem, aí se produzindo uma equivalência entre o estado errático da
individualidade e o próprio mundo espiritual.
Na
questão 224 de O Livro dos Espíritos,
o Mestre de Lyon obteve dos Espíritos instrutores a inferência de que, no
intervalo das encarnações, a alma constitui um Espírito errante, a quem incumbe
aspirar a uma nova encarnação e aguardá-la. Em verdade, o Bom Senso Encarnado
interrogou o que é a alma no intervalo das encarnações, não havendo perguntado
onde a alma estaria ou em que lugar ela se encontraria, pois, a resposta se lhe
teria afigurado óbvia. A profundidade filosófica da interrogativa ultrapassa os
lindes da obviedade.
A
pergunta, como se pode naturalmente depreender, atém-se a um gravíssimo
problema ontológico, isto é, ao problema da natureza essencial do ser, aí
entendido de modo transcendental, enquanto princípio inteligente
individualizado. Nas questões ulteriores, o exame restou mais amplamente
desenvolvido, havendo-se chegado, no item 225 da Obra Inaugural, à verdadeira ideia
de erraticidade como um estado subjetivo
ou uma condição da alma no intervalo
das encarnações. Em outras palavras, afigura-se errante o Espírito suscetível
de reencarnar-se, de retornar ao mundo orgânico, de enclausurar-se novamente em
um corpo denso.
No
item recém-analisado, depara-se a iniludível conclusão de que erraticidade
compõe um estado subjetivo e uma condição dos Espíritos de 2ª. e 3ª. ordens,
haja vista mostrarem-se errantes, segundo a resposta dos Instrutores, Espíritos
pertencentes a todas as gradações. Desse modo, se os há de todos os graus, em
erraticidade, não se pode inferir outra coisa senão admitir a ideia na monta de
uma condição de passividade reencarnatória. Em apoio de tal afirmativa, pode
ler-se, por exemplo, a questão 226, em que resta afirmada a situação de definitividade
espiritual dos Espíritos puros, já insuscetíveis de reencarnações, uma vez
chegados à perfeição individual.
Ora,
os Espíritos puros, não estando mais em
erraticidade (prefira-se em à na), continuam a viver no mundo espírita, razão por si mesma
suficiente a comprovar a distinção semântica dos vocábulos em tela. Logo,
erraticidade constitui uma situação de passividade reencarnatória, enquanto
mundo espírita equivale, por assim dizer, ao local ou lugar em que preexistem e
sobre-existem os Espíritos.
Outrossim,
O Livro dos Espíritos, por exemplo, nas questões 232 e 318, alude à noção de
estado de erraticidade, embora, em algumas traduções, exsurja a contração na (em +
a) na pergunta da questão 230, dando uma
confusa ideia de lugar. Em suma, trata-se evidentemente de um erro de tradução,
pois a pergunta em língua francesa se encontra assim: 230. L’Esprit progresse-t-il à
l’état errant? Não se encontra referência ao vocábulo erraticidade, por tratar-se de um
neologismo não abonado, no Brasil, nem pelo Aurélio nem pelo Houaiss. Dessa
maneira, resta evidente a utilização de uma ideia de condição no termo l’état
errant, claramente modificado por uma tradução adaptada a uma ideia
preconcebida. Aliás, a nova tradução da FEB por Evandro Noleto Bezerra e a de Herculano
Pires contêm remissão ao termo original, em absoluta deferência ao texto
kardeciano. Não obstante, no equívoco parecem ter incorrido – tudo no-lo indica
- o brilhante Júlio de Abreu Filho,
na sua tradução pela editora Pensamento, e o impoluto Guillon Ribeiro, na primeira tradução da FEB.
Outra
gravíssima e falsa identidade também se há comumente feito entre a ideia da vida mental-emotivo-ético-moral (mundo
subjetivo) do Espírito e o próprio mundo
espiritual. Posto que a primeira interfira no segundo, devido à maleabilidade
dos fluidos espirituais (vide cap. XIV de A Gênese),
não há confundi-los em uma coisa só. O mundo espírita mostra-se, por assim
dizer, exterior ao Espírito, uma vez que a individualidade vive e sobrevive
nesse ambiente. Em outras palavras, o mundo espírita não se compõe de todos os
Espíritos agrupados ou reunidos por afinidade, porém realmente se diferencia
deles como um ambiente em que eles vivem. O mundo espírita contém o Espírito,
enquanto este se contém naquele. Isto de reduzir o mundo espiritual aos
próprios Espíritos conjugados assemelha-se a uma espécie de panteísmo suprafísico. Tais pseudo inferências,
aliás, têm sido publicadas e divulgadas na internet por um certo psiquiatra
carioca, dentro de um paradigma niilista
adstrito a um malparado e falso purismo
doutrinário, em que há de ter-se muita cautela.
Em
muito purismo doutrinário, não raro, logra-se, de cambulhada, encontrar ideias
alienígenas e pouco afeiçoadas ao verdadeiro sentido de conceitos espíritas
nucleares. Nas questões 84 usque 87 de O Livro dos Espíritos, apresenta-se o
mundo espírita como anterior ao denso, não sendo aquele a vida subjetiva da
individualidade (cap. XIV de A Gênese). Mundo espírita e vida moral do Espírito não equivalem um
ao outro, conquanto interajam. Conceber essa falsa identidade seria crer em um
niilismo espirítico, dentro de uma distorcida exegese doutrinária.
Conseguintemente,
o mundo espírita, por antecedente ao mundo material, tem consistência per se é
não pode ser concebido senão como ambiente em que vivem os Espíritos e com que
eles naturalmente interagem. Aliás, de tão real e de tão consubstancial em si
mesmo, ele poderia existir independentemente do mundo material, segundo
asseveram os Espíritos. Assim, o Espírito possui vida subjetiva, notadamente
vida moral, a diferenciar-se do mundo objetivo
em que ele preexiste e sobrevive. Como as barreiras entre as duas perspectivas
estão fragilizadas em estado de Espírito, a condição moral – subjetiva – da
individualidade cria um mundo subjetivo-objetivo,
pela sua interação com a matéria fluídica. Ademais, consoante teoriza o Mestre
de Lyon, essa interferência fluídica pode ser até inconsciente (§2º. do item 14 do cap. XIV de A Gênese).
Em O Que é o Espiritismo (itens 16 e 17 do cap. II),
por exemplo, podem encontrar-se referências à natureza concreta e circunscrita
do Espírito, não compondo ele uma abstração ou uma ideia cerebrina. Desse modo,
para circunscrever-se, isto é, para delinear-se em algo (princípio inteligente e perispírito), ele há de ter em si zonas limítrofes, capazes de
distingui-lo do ambiente circunjacente (mundo
espírita). Também se observe o detalhe
de que, segundo a questão 284 de O Livro dos Espíritos, os Espíritos se
identificam uns para os outros pelo perispírito, tal qual o fazem os homens com
os corpos densos, evidência mais do que suficiente a demonstrar a independência
subjetiva da individualidade espiritual relativamente ao mundo espírita.
Os
fenômenos psíquicos decorrem a priori das faculdades do Espírito (ser concreto e circunscrito),
ou seja, do psiquismo espirítico e não do mundo espírita, porquanto a
inteligência, os sentimentos, as emoções e a vontade só podem advir de
faculdades espirituais, isto é, de faculdades do ser espiritual. De mais a
mais, o mundo espírita só deve ser considerado como o mundo psíquico na exata
medida em que a individualidade logra nele interferir. Leia-se, para melhor
compreensão, a brilhante análise de Kardec intitulada A Morte Espiritual, constante das Obras Póstumas, na qual se deduz muito claramente essa questão das
faculdades do Espírito encarnado ou errante.
Logo,
tanto erraticidade se distingue de mundo espírita, quanto o último se
diferencia de vida moral do Espírito. Para arrematar o presente ensaio e para
gerar reflexão, consigna-se um entrecho de notável análise de Kardec, a qual
consta da edição de dezembro da Revista
Espírita de 1862 (Estudo Sobre os
Possessos de Morzine – Causas da Obsessão e Meios de Combatê-la, a partir do
penúltimo período do segundo parágrafo):
Assim, os mundos visível e invisível se
interpenetram e se alternam incessantemente, se assim nós podemos exprimir, e
se alimentam mutuamente; ou, melhor dizendo, na realidade esses dois mundos
não constituem senão um só, em dois estados diferentes. Esta consideração é
muito importante para melhor compreender-se a solidariedade que existe entre
eles. (Grifo nosso).
Por Ricardo Matos
Damasceno
FONTE: http://www.espiritualidades.com.br
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