“Por
definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade
que não pode conviver pacificamente com outras que a negam.”
Por
definição, está coberto de razão o grande escritor peruano, quando coloca o
problema da intolerância religiosa como reflexo da enorme diversidade cultural
que caracterizam os povos e espelho das mentalidades que também se diferenciam
dentro dos próprios grupos sociais.
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (11/07/2004), sobre o caráter laico do Estado e da União Européia, ele fala com conhecimento de causa e faz a afirmação acima citada baseando-se na experiência histórica de religiões e filosofias e que foram desviadas de suas bases originais para satisfazer interesses bem distanciados daqueles delineados por seus criadores.
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (11/07/2004), sobre o caráter laico do Estado e da União Européia, ele fala com conhecimento de causa e faz a afirmação acima citada baseando-se na experiência histórica de religiões e filosofias e que foram desviadas de suas bases originais para satisfazer interesses bem distanciados daqueles delineados por seus criadores.
Não importa
a relatividade desses conceitos – se religião ou religiosidade, fé ou crença
devoção ou adoração – a repercussão desse elemento cultural na mente humana
dificilmente poderá ser dissociado do fanatismo, dos impulsos passionais e do
radicalismo emocional. Não é à toa que a sabedoria popular ensina que não se
deve discutir religião e futebol, se quisermos preservar relações amistosas.
Durante séculos fomos educados para a intolerância e para o radicalismo.
Preconceitos religiosos foram pacientemente enraizados em nosso psiquismo e no
comportamento, como peças estratégicas para preservação de grupos e sistemas
ideológicos. Mesmo as grandes lições de fraternidade e tolerância caíram no
esquecimento e no universo lendário. O próprio Mahatma Gandhi, figura
contemporânea da Era Atômica, parecia em sua época e ainda hoje ser algo
inacreditável, saído das páginas de algum livro de mitologia.
Mas somos,
como categoria social humana, um complexo multicolorido de ideologias e
crenças, seja em forma de partidos políticos, de cultos religiosos, agremiações
filosóficas ou estilos de vida que consideramos atraentes e afins com a nossa
maneira de ver o mundo, de agir, de pensar e de sentir as coisas. Nesses
agrupamentos procuramos respostas, conforto espiritual, aceitação, respeito,
reconhecimento, todas as soluções possíveis para resolver os nossos conflitos
interiores, nossas carências internas e externas, reparos de danos e traumas, enfim,
a busca da felicidade, de um Norte, de uma plenitude, da auto-realização. É por
esse motivo, inclusive, que constituímos famílias - não importando qual o
modelo - e mantemos viva a imagem do “ninho” ou da “tribo” como símbolos da
nossa identidade pessoal e social. Nossos ninhos e tribos continuam sendo o
nosso principal endereço existencial, a referência na qual mantemos o pé de
apoio para dar todos os passos importantes e decisivos nas experiências
vivenciais. Até mesmo as organizações criminosas ou os agrupamentos de hábitos
considerados fúteis, quando ameaçados em seus interesses, reagem com suas
ideologias, doutrinas, dogmas, tradições, raízes, ídolos, eventos históricos,
como armas para justificar e legitimar suas necessidades e suas próprias existências.
Vejamos, por exemplo, os recentes acontecimentos de 11 de setembro, onde o
terror teve a religião como principal fonte de motivação ideológica. “Mas é uma
religião primitiva e atrasada!”, diriam os ateus ou então aqueles outros que
julgam que sua religião é superior às demais. Como se o problema fosse a
religião em si, quando na verdade é o comportamento sectário embutido
historicamente nas religiões e confrarias que alimentam esses flagelos de
mentalidade. A intenção dos atentados terrorista foi de ordem política, mas os
agentes executores o fizeram por uma causa religiosa, ou seja , a crença de que
seriam recompensados num outro mundo por terem agido com renúncia e coragem.
Isso é histórico: é só lembrar as monarquias teocráticas de todos os tempos, os
tribunais da Inquisição, as cruzadas, o calvinismo europeu, os regimes
totalitários nos anos 30 e durante a Guerra Fria.
O grau de
intolerância demonstrado por aqueles que hoje se suicidam pela sua crença
certamente não é o mesmo daqueles que discriminam, perseguem e expulsam seus
companheiros de ideologia, quando estes começam a destoar dos seus pontos de
vista, mas as causas são idênticas: a incapacidade de compreender e conviver
com a diversidade e de aceitar o princípio igualdade humana como lei universal.
Nas situações de conflito, quando o egoísmo e o orgulho predominam como fonte
de poder, a igualdade e a humildade passam a ser vistos como valores banais, de
pessoas fracas e poucos inteligentes. Quando se trata de conflitos de crença e
ideologia, esse fator humano de arrogância e prepotência assume proporções mais
violentas, mesmo quando disfarçadas pela polidez institucional, pelas
aparências jurídicas, pela hipocrisia das relações artificiais. Temos visto
isso acontecer em todas o setores sociais, mas nas agremiações religiosas elas
acontecem com mais frequência e são mais camufladas com um forte teor de
hipocrisia. Nesses ambientes de orações, meditações, vibrações, peregrinações,
curas, oferendas, cantorias e celebrações, a camuflagem torna-se mais sutil e
mais eficiente no jogo de aparências. Aí a mente é capaz de realizar
verdadeiros prodígios de dissimulação: sorrir e odiar; orar com a voz mansa e
emotiva e, ao mesmo tempo, conspirar criminosamente para eliminar o adversário.
Pode parecer chocante, mas é a mesma ginástica ideológica que faz o matador de
aluguel rezar de joelhos para pedir perdão antes de cometer o ato insano.
Essa
perversão da fé e da religiosidade só tem uma explicação: orgulho e egoísmo.
Ninguém consegue abrir mão de posições e posturas, de pontos de vista ou de
opiniões quando estão sob o efeito das aparências, da imagem artificial que
possuem das coisas e de si mesmos. É uma doença existencial com fortes
elementos de ordem emocional, como uma ferida infectada, cuja característica
marcante é o hábito sistemático de fugir da realidade e de mentir para si
próprio. Quando fingimos ou dissimulamos ideias e sentimentos, com a intenção
de ocupar espaço ideológico ingressamos imediatamente num jogo perigoso, de
difícil sustentação. Daí ser muito comum e constante o uso de expedientes
ardilosos, geralmente incompatíveis com a ética religiosa ou filosófica dos
grupos que frequentamos.
Não é
coincidência também que a desilusão pessoal e a decepção com as contradições
humanas são a maior causa da deserção dos adeptos desses grupos. Desertamos na
medida que caem os mitos, as aparências, as imagens distorcidas: mitos que nós
mesmos criamos, aparências que deixamos nos iludir, imagens que construímos com
distorções, segundo os nossos próprios interesses inconscientes e limites
psicológicos. Quando isso acontece, quase sempre colocamos a culpa nos outros,
nos líderes, nas doutrinas, nos acontecimentos, sem jamais avaliar que o nosso
ponto de vista é que sempre foi o verdadeiro responsável pela condução dos
nossos sentimentos e atitudes. Recentemente tivemos a oportunidade de ouvir as
queixas de um militante bem desiludido com os espíritas, com os centros
espíritas e com o Espiritismo. Bastante abatido com a derrota em uma disputa na
qual, segundo ele, entrou de corpo e alma, em nenhum momento reconheceu o fato
de ter se deixado iludir, mas atacou com muita propriedade todas as
imperfeições das pessoas e das instituições envolvidas na sua triste história.
Nos lembramos dos textos de “Obras Póstumas” e da “Revista Espírita”, mas não
tivemos coragem de recomendá-los naquele momento de mágoas e decepções. Um
pouco desolados com essa história de poder e glória em uma instituição
espírita, fomos nós mesmos nos consolar nas memórias de Kardec, repletas de
experiências sobre os problemas da convivência humana. Ali podemos observar
como é possível empreender esforços para superar tendências históricas, hábitos
culturais e inclinações pessoais que perpetuam o fanatismo e a intolerância. A
experiência de Kardec prova que é possível ir além das definições, romper
preconceitos seculares e avançar cada vez mais no terreno da liberdade de
consciência. Definições não são apenas artifícios de linguagem, mas ferramentas
precisas para identificar coisas, circunstâncias e paradigmas predominantes.
Mas é
preciso ir além, quebrar paradigmas, ousar, como fizeram os demolidores de
preconceitos em todas as épocas. Eram, é claro, pessoas de moral acima do
normal e de comportamento diferenciado da média, mas todos tinham algo em
comum: eram seres humanos e jamais se deixaram escravizar por ideias e crenças.
Muito pelo contrário, atacaram suas próprias culturas nos pontos que
consideravam frágeis e ilusórios. Budha atacou o desejo e a sensualidade que
contaminava a espiritualidade em seu tempo; Jesus posicionou-se estratégica e
heroicamente contra a intolerância, o fanatismo e o comércio das coisas
sagradas; Lao-tsé e Confúcio empreenderam suas inteligências contra a corrupção
e o comodismo; Comênius e Pestalozzi viram na infância um terreno fértil para
plantar as sementes da transformação do tempo futuro e não somente no cultivo
das tradições do passado. Allan Kardec demoliu o materialismo e o sobrenatural,
reconstruiu a fé e resgatou a religiosidade sem se deixar contaminar pela
ingenuidade mística ou se impressionar com os “mistérios” ditos “ocultos”.
Martim Luther King, seguindo os passos de Gandhi, desmontou a farsa que
encobria em seu país o mito da liberdade e os direitos civis.
Seria de uma
grande utilidade se nós, os espíritas, pudéssemos refletir sobre esse assunto e
transpormos suas conclusões para os ambientes que freqüentamos e a ideologia
que cultivamos como fonte de realização. Podemos avançar as definições e romper
paradigmas. Como o Espiritismo não é religião - nesse sentido histórico
sectário –, muito menos futebol, podemos discutir tranquilamente essas
delicadas questões ideológicas:
Como temos
cultivado o conceito de verdade no Espiritismo?
Como temos
lidado com o pensamento divergente?
Temos agido
dentro da ética espírita quando atuamos politicamente em suas instituições?
Afinal,
nossa fé tem conseguido encarar a razão face a face?
Por Dalmo Duque dos Santos
FONTE: https://espirito.org.br
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