Racismo no Espiritismo?

Ação de estabelecer um contexto para determinada coisa
Questão da contextualização


Todo e qualquer texto é produto de sua época. A produção do conhecimento depende do caldo cultural que o produziu. Detalhes como os paradigmas científicos, os dogmas, regime econômico, importância das religiões, crenças mais ou menos particulares, tolerância política e religiosa, entre muitos outros, afetam diretamente qualquer produção cultural.

Esse é o motivo pelo qual, para uma compreensão precisa de uma mensagem, é fundamental, imprescindível mesmo saber por quem, em qual época e onde ela foi produzida – e assim podemos inseri-la nesse contexto.

A esse processo se dá o nome de contextualizar. A falta dessa contextualização pode levar a graves erros interpretativos, na medida em que se pode considerar uma mensagem com os preconceitos da época em que ela é estudada, não daqueles na qual ela foi produzida.

Vejamos um exemplo:
“O negro pode ser belo para o negro, como um gato para outro gato. Mas não é belo no sentido absoluto, porque seus traços grosseiros, os lábios grossos (...) podem perfeitamente exprimir as paixões violentas, mas não se prestariam às nuanças delicadas do sentimento e à suavidade.”

Se, ao nos deparamos com este texto, perguntarmos aos leitores a qual ideologia pertence, poderíamos, com toda a lógica, atribuí-lo a alguma escola de pensamento racista, extremista e fanática. Não seria absurdo imaginá-lo na boca de um nazista ou de um membro da Ku Klux Klan.

Como ele não se coaduna, de nenhum modo, com os tempos mais tolerantes e politicamente corretos em que vivemos, seria atacado violentamente por qualquer homem de bom senso, seu autor anatematizado e, se houvesse uma organização formal a qual pertencesse, seria processada por racismo.

Tal texto é de autoria de Allan Kardec. Pode ser encontrada em Obras Póstumas, no capítulo A Teoria da Beleza. Alguém que conhece o Espiritismo, mas nunca o tivesse lido, certamente haveria de ficar chocado – talvez suas convicções espíritas balançassem. O preconceito racial que se vislumbra neste parágrafo pode facilmente levar a doutrinas perigosas, que pensam a raça negra como inferior e, portanto, justifica atos como a escravidão.

Entretanto, se entendermos que este texto foi escrito em uma época extremamente eurocêntrica, compreenderemos que dificilmente o texto poderia ser diferente. O europeu do século XIX somente poderia considerar belo seu igual, uma vez que o conceito antropológico da igualdade das diferentes cultural só surgiria no século seguinte.

Portanto, uma leitura interpretativa de uma produção intelectual qualquer, para ser bem fundamentada, exige que se conheçam detalhes sobre o modo pela qual foi construída. É de certa forma, subordinada à história, na medida em que depende do conhecimento do contexto em que foi produzida – isto é conhecido como Hermenêutica*. Entretanto, não pode deixar de considerar a mensagem como mais do que simplesmente uma produção linguística. Ela possui elementos sociais que vão além do que está explícito. Estudar uma mensagem levando esses elementos sociais em consideração é a proposta da análise do discurso.

(*) Hermenêutica – do grego herméneuein, que significa declarar, esclarecer, interpretar – significa que alguma coisa é tornada compreensível, levada à compreensão. Em Filosofia, segundo Scheleiermacher, é a parte que visa não o saber teórico, mas sim o uso prático, isto é, a praxis ou a técnica da boa interpretação de um texto falado ou escrito.

Isto significa que a hermenêutica como método, busca não uma análise crítica da mensagem, de um ponto de vista racional. Não quer avaliar comparativamente a mensagem com crenças ou ideologias. Procura unicamente interpretar essa mensagem em bases históricas, levando em consideração apenas sua época e autor.

Por Reinaldo Di Lucia

 FONTE: http://www.cpdocespirita.com.br/Trabalhos/Assinado,eu_Reinaldo.pdf

Trabalho apresentado no IX simpósio Brasileiro do Pensamento Espírita, 
Santos/SP – 2005.

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