Parecerem ter a mesma ideologia, só que não! |
Correlações entre Cristianismo e Espiritismo sempre provocam controvérsias históricas. Até hoje, espíritas cristãos, religiosos não se entendem com espíritas laicos, livres-pensadores. Ora, será que Allan Kardec imaginava os conflitos, cisões e o descompasso que haveria entre os espíritas em função dessas controvérsias? Quais motivos o levaram a interpretar o Cristianismo?
Na Revista Espírita, Kardec reafirma o caráter científico e experimental da Doutrina, conforme a definição de O Que é o Espiritismo (1860), bem aplicada n’O Livro dos Médiuns (1861). Todavia, a partir de O Evangelho Segundo o Espiritismo(1864), dedica-se à hermenêutica, à exegese dos evangelhos e vincula o Espiritismo à teologia judaico-cristã como a Terceira Revelação, o Consolador prometido pelo Cristo. Kardec chega a admitir, sutilmente, que O Espírito de Verdade seria Jesus, contrariando o que afirmara em Instruções Práticas Sobre as Manifestações Espíritas (1858), quando revelou que esse espírito fora um grande filósofo da Antiguidade.
Não há como negar a vinculação ao Cristianismo, a começar pela terminologia adotada na Kardequiana. A tal “questão religiosa” nasce com Roustaing e é reafirmada por Kardec devido à adesão ao Cristianismo, mesmo tendo negado várias vezes que o Espiritismo fosse religião.
Muitas são as interpretações dessa postura de Kardec. Há quem imagine que ele fundou um neocristianismo. Para outros, fez concessão à Igreja ao escrever obras interpretativas da teologia cristã. Para muitos, o Espiritismo é o Cristianismo redivivo, sua revivescência.
Ora, não houve concessão alguma ao Cristianismo, à Igreja, senão o comportamento de Kardec seria outro. Ele não era um sujeito frouxo, inseguro. Basta ver a polêmica que travou com Chesnel. Por outro lado, é equivocada a tese de que Kardec desejava fazer do Espiritismo uma forma sofisticada de Cristianismo, de que ele, sem querer querendo, fundou uma nova religião cristã. Essa leitura é correta em relação ao roustainguismo ou à Igreja Mórmon, porém nunca em relação à Doutrina. E além do mais, o Espiritismo não adota a Bíblia como texto fonte. Este fato, por si só, o exclui do rol das religiões cristãs. O Espiritismo não é um Cristianismo.
É preciso contextualizar essa questão. A atitude de Kardec representa a resposta à demanda social e cultural de seu tempo. A partir de 1860, desloca-se de Paris e viaja por toda a França, Bélgica, Suíça a fim de atender aos apelos dos novos grupos espíritas que nasciam. Em sua cidade natal, Lyon, polo industrial similar ao nosso atual ABC, Kardec deu de cara com muitos operários, gente simples, de mãos calejadas, semianalfabeta. Isso deve ter sido algo inusitado e muito marcante, surpreendente mesmo para alguém acostumado a um público com outro perfil, mais elitista e sofisticado.
A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas era composta por membros da elite, da nata da sociedade. Os novos grupos periféricos, por sua vez, possuíam perfil mais modesto, com particularidades outras e a influência tenaz do Cristianismo, porque formados por adeptos recém-saídos da Igreja ou que ainda a frequentavam. A propósito, para Kardec, podia-se ser espírita sem rejeitar o catolicismo, sem deixar de ter alguma religião. Tal orientação não é gratuita.
Os livros que escreveu, a partir de O Evangelho, visam atender à necessidade de se vislumbrar, no próprio Cristianismo, elementos interpretativos da Doutrina, não somente da experimentação, do empirismo mediúnico, mas também de sua filosofia e teoria de valores. Ele entendia, inclusive, que o Espiritismo teria a missão de oferecer à Igreja a sustentação de seus dogmas, além de funcionar como o “traço de união” entre ciência e religião.
Oportuno lembrar que no século 19, devido ao avanço econômico, da ciência e dos costumes, as religiões perdem terreno, adeptos e o poder que sempre tiveram, porque são inimigas da modernidade, do progresso. Pois o Espiritismo nasce, justamente, em pleno surgimento da modernidade, em meio à crise das religiões e procura dar conta de questões onde elas fracassaram, especialmente a cristã. Daí o esforço de Kardec em escrever obras que atendessem a essa demanda, constatada em sua excursão doutrinária. Não foi nenhum tipo de concessão, nem houve intenção de se fundar uma nova religião cristã ou instituir “A Religião”.
Outro aspecto é o fato de que o Espiritismo, apesar de definido como filosofia espiritualista, não dialoga com boa parte da tradição filosófica ocidental. Ou seja, a conexão direta não é com Platão, Aristóteles, Espinosa, Kant, Hegel etc., mas sim com o humanismo iluminista, o espiritualismo em geral, com o Spiritualism norte-americano e inglês, com o espiritualismo filosófico (Leroux, Reynaud, Lessing), os utópicos (Fourier, Cabet, Saint-Simon) e, inclusive, com a cultura celta: gaulesa e bretã.
A busca do diálogo com o judaico-cristianismo surge da necessidade cultural, religiosa na França do século 19. O Cristianismo não tinha aí a mesma força que na Espanha (vide o Auto de Fé de Barcelona), mas era a religião hegemônica. Se Kardec não fosse homem de prestígio, amigo de Napoleão III e outros maçons, de membros influentes da elite francesa, a Igreja esmagaria o Espiritismo, que teria abortado logo de início.
Kardec sabia que haveria divergências, cisões, por isso redigiu o Projeto 1868 e delineou rumos seguros à organização do Espiritismo como movimento social. O Período Religioso, imaginado por ele na sua prospecção cartesiana da propagação espírita, não tem o sentido de laço, de elo, de comunhão entre os espíritas. O religioso aí é no sentido religioso mesmo, sem trocadilho. É religioso com significado de culto. Senão, segundo a acepção que aplicava ao termo religião, ele deveria denominar esse período de Religionário, usando-o no sentido de laço (religion). Kardec vislumbrou que após esse Período Religioso, impregnado pelo Cristianismo, haveria outro, de transição, até o Espiritismo assumir integralmente sua vocação natural de “influência sobre a ordem social”, no Período de Regeneração Social.
Como se vê, a conexão entre Cristianismo e Espiritismo é um tema complexo, exige conhecimento histórico, de filosofia, teologia, antropologia e muitas áreas outras. Não basta somente conhecer a Kardequiana, é preciso situa-la em seu contexto histórico. Muitas polêmicas e divergências poderiam ser amainadas se os espíritas se dedicassem a esse tipo de leitura, ao invés de ficar garimpando na Kardequiana, aqui e ali, palavras de Kardec acerca dessa questão.
Por Eugenio Lara
FONTE: http://ccepa-opiniao.blogspot.com.br/
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